domingo, 16 de novembro de 2008

O Direito à saúde

O DIREITO À SAÚDE E A RESERVA DO POSSIVEL

Silmário Antonio G. de Sousa (*)

A sociedade civil brasileira tem enfrentado verdadeiro tormento no que se refere à saúde, direito de todos e obrigação do Estado, conforme preceitua o Art. 195 da nossa Lei Maior, e que está intimamente vinculada a algo fundamental: o direito à vida.

Diariamente, vemos nos telejornais e na imprensa escrita casos de verdadeiro abandono de hospitais e postos de saúde, onde a população vê-se humilhada e abandonada por quem tem o dever de protegê-la. Falta de médicos e de medicamentos, inexistência de leitos para internamento e UTI, superlotação das unidades de saúde são apenas alguns exemplos das deficiências existentes.

Pessoas carentes, portadoras de patologias graves e sem recursos suficientes para pagar um plano ou seguro de saúde privado procuram os hospitais públicos e ali ficam esperando vaga para atendimento e/ou internamento. Muitos deles morrem sem conseguir a oportunidade de receber os primeiros e mais simples cuidados médicos. Sem falar, ainda, nas epidemias de dengue e febre amarela que assolam diversas regiões nacionais.

Para justificar o não cumprimento da sua obrigação constitucional, o Estado alega a inexistência de recursos em virtude de limitação orçamentária, olvidando-se que a tutela das finanças públicas não pode ser vista como um fim em si mesmo, pois o Estado existe para atender as necessidades vitais do ser humano – e não o contrário.

A respeito do assunto, tem-se levantado a questão da “reserva do possível” instituto criado pela doutrina alemã que sustenta a idéia de que a efetivação dos direitos sociais estaria condicionada às limitações de ordem econômica. A aceitação pura e simples de tal dispositivo no nosso ordenamento jurídico é inconcebível, principalmente em virtude do Brasil e da Alemanha apresentarem realidades distintas, tanto econômicas quanto sociais, além do nosso País possuir peculiaridades que merecem ser analisadas.

No Art. 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, os constituintes reservaram 30% do orçamento da Seguridade Social para investimentos em Saúde. Em recente entrevista a uma revista de circulação nacional, o ex-ministro da saúde Adib Jatene informa que se esse percentual fosse seguido, o Ministério da Saúde teria, em 2008, o montante de 120 bilhões de reais, valor muito superior ao orçado atualmente, que se situa em torno de R$ 48 milhões.

Na mesma publicação, o atual ministro da Saúde, José Gomes Temporão, declara que há um subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde, pois o Brasil gasta apenas R$ 1,00 por dia por pessoa para manter o sistema público de saúde, enquanto os EUA gastam o equivalente a R$ 34,00 por dia.

Em outros países do terceiro mundo os gastos com a saúde variam entre U$ 300 e U$ 500 por cidadão/ ano e nos países desenvolvidos entre U$ 800 e US 2000 per capita.

Ainda de acordo com a revista, desde 2003 a Controladoria Geral da União analisou a aplicação de repasses em 1.341 municípios brasileiros escolhidos por sorteio. De 1,5 bilhões de reais repassados pelo Ministério da Saúde, 568 foram desviados ou mal aplicados, ou seja, um terço do dinheiro não foi utilizado em benefício dos cidadãos.

Em vista dos dados apresentados, fica claro que o problema da saúde no Brasil é uma questão de falta de vontade política, gerenciamento orçamentário deficiente, incompetência administrativa e gestão fraudulenta dos recursos.

Não se discute que reside, primariamente, na esfera do Legislativo e do Executivo, a prerrogativa de formular e executar as políticas públicas, porém cabe ao Judiciário, de forma excepcional, determinar que elas sejam implementadas, sempre que os órgãos estatais descumprirem os encargos sob sua responsabilidade e vierem a comprometer, com a sua omissão e incompetência, a eficácia e a integridade dos direitos sociais, consagrados em nossa Carta Magna.

O Judiciário possui um papel preponderante e importante neste tema. Ele pode, e deve, garantir o direito à saúde determinando que o Estado providencie os recursos necessários, seja através da suplementação de créditos orçamentários, ou do remanejamento/transferência de uma categoria menos importante, como propaganda governamental, por exemplo, para áreas vitais da sociedade.

Valem as palavras do jurista Paulo Bonavides, citado por Ieda Cury no seu livro Direito Fundamental à Saúde: “Só pode sentir-se parte de sociedade quem sabe que essa sociedade se preocupa ativamente com sua sobrevivência, e com uma sobrevivência digna. Assim, verifica-se que a cidadania é uma relação de mão dupla: dirige-se da comunidade para o cidadão, e também do cidadão para a comunidade. Portanto, só se pode exigir de um cidadão que assuma responsabilidades quando a comunidade política tiver demonstrado claramente que o reconhece como membro seu, inclusive através da garantia de seus direitos sociais básicos”.

A simples alegação do Poder Executivo de que não pode atender às demandas sociais, especialmente o direito de assistência à saúde, com base na “reserva do possível” deve ser vista com desconfiança. É insuficiente a justificativa de que inexistem recursos, há que se demonstrá-la, principalmente nos casos que envolvem o direito à vida e à dignidade humana.

(*) Acadêmico de Direito da Faculdade Salvador – FACSAL.